Desde criança, “a natureza aberta e espaçosa da vida vai se
estreitando no gargalo do medo“, e quanto mais medo, mais condicionamentos,
e quando se vê, já era. Mas não era, não. O condicionamento “tem jeito”. Onde
se manifesta o condicionamento senão aqui e agora, em nossa mente e nosso
corpo? O medo, os condicionamentos e o pior subproduto deles, a auto-imagem
iludida que criamos e mantemos por causa deles, é o assunto do trecho abaixo,
da mestra zen americana Charlotte
Joko Beck (1917-2011), discípula do mestre Taizan Maezumi Roshi, autora
de livros como “Nada
Especial: Vivendo Zen” (Nothing
Special: Living Zen, 1994) e “Sempre Zen -Como Introduzir a Prática do Zen em Seu
Dia-a-Dia” (Everyday Zen: Love and Work, 1989) e criadora do San
Diego Zen Center (SDZC), na California (EUA). Nesse curto trecho abaixo, ela
descreve como o problema todo (se é que há um) está na nossa decisão de
sustentar uma imagem maculada por medos e condicionamentos.
Como Joko Beck diz, “felizmente, como essa
decisão é composta por pensamentos e reflete-se em contração corporal, ela pode ser minha mestra quando me experimento
neste exato momento“. É nesse sentido – neste exato momento –
que as práticas Zen estão centradas, e também terapias de consciência corporal
como a Gestalt Terapia, a Terapia Reichiana e a Bioenergética, que trabalham
ativamente esse pont. No caso de Joko Beck e do Zen, a meditação é onde isso
acontece: a atenção na meditação revelaria onde está o que ela chama de ponto de estrangulamento do medo.
“Ao atentar para os pensamentos e ao experimentar as contrações corporais
(fazendo o zazen), o ponto de estrangulamento do medo fica iluminado“.
É um artigo que certamente precisa de prática de meditação
ou de terapia (ou ambos), pois a compreensão intelectual é simples, ainda que
possa ser importante para nosso esclarecimento e motivação.
Segue o trecho abaixo, com agradecimentos e
reverência a Charlotte
Joko Beck e aos ensinamentos transmitidos por ela.
_______
“O Ponto
de Estrangulamento do Medo” [TRECHO]
Do livro “Sempre Zen”
Por Charlotte Joko Beck
Do livro “Sempre Zen”
Por Charlotte Joko Beck
As limitações da vida estão presentes na
concepção. Os próprios fatores genéticos são limitações: somos do sexo
masculino ou feminino, temos propensão a determinadas doenças ou fraquezas
corporais. Todas as linhagens genéticas reúnem-se para produzir determinados
temperamentos. É evidente a qualquer mãe com o feto em seu ventre, as tremendas
diferenças que existem entre os bebês, antes mesmo de nascerem. No entanto,
para a discussão que propomos, começaremos com o bebê ao nascer. Para os
adultos, o recém-nascido parece aberto e não-condicionado. Durante suas
primeiras semanas de vida, o imperativo do bebê é a sobrevivência. Basta ouvir
um nenê recém-nascido berrando: é fácil perceber como o som atravessa a casa
toda. Não consigo me lembrar de nada que tenha a mesma qualidade revolucionária
que o choro de um recém-nascido. Quando ouço aquele som quero fazer alguma
coisa, qualquer coisa, para interrompê-lo. Não leva muito tempo para o bebê
aprender que, apesar de seus esforços incessantes, a vida nem sempre é
agradável. Lembro-me de deixar meu filho mais velho cair de cabeça, quando
tinha seis semanas. Pensei que eu era uma mãe nova muito esperta, mas ele
estava ensaboado e…
Desde muito cedo, todos começamos a tentar
nos proteger das ameaçadoras ocorrências que nos atingem com regularidade.
Diante do medo que nos causam, começamos a nos contrair. A natureza aberta e
espaçosa do início da vida vai se estreitando num funil dentro do gargalo do
medo. Assim que aprendemos a falar, a rapidez dessa contração aumenta. Conforme
nossa inteligência aumenta, o processo realmente toma-se mais veloz; então, não
só tentamos manipular a ameaça, armazenando-a em cada célula de nosso corpo,
como (através da memória) relacionamos cada nova ameaça a todas as anteriores e
o processo forma-se de modo acumulativo.
Estamos todos familiarizados com o processo
de condicionamento: imaginemos que, quando eu era bem pequena, um menino
grande, forte, de 5 anos e cabelos ruivos, apoderou-se de meu brinquedo
favorito. Fiquei apavorada e condicionada. Hoje, toda vez que uma pessoa ruiva
passa pela minha vida fico inquieta por nenhum motivo aparente. Poderíamos
dizer então que o condicionamento é o problema? Não, não exatamente. Mesmo
quando repetido com freqüência, o condicionamento se esvai com o tempo.
Por essa razão, alguém que fala: “Se você soubesse o que minha vida tem sido,
não é de espantar que eu esteja nessa bagunça; sou tão condicionado pelo medo,
não tem jeito”. Essa pessoa não está captando o cerne do problema. O que é
sem dúvida verdade é que nós todos somos constantemente condicionados e, sob a
influência desses incidentes, revemos devagar nossas concepções a respeito de
quem somos. Depois de termos sido ameaçados em nossa abertura e
disponibilidade, decidimos que nosso ser mais autêntico é a contração do medo.
Revejo minhas noções de pessoa e de mundo, e defino uma nova imagem de mim
mesma; e, independente de essa imagem ser de conivência, de rebeldia ou de
recolhimento, não faz muita diferença. O que difere é minha decisão cega de
agora ter de corresponder a essa imagem contraída de mim mesma para poder
sobreviver.
O ponto de estrangulamento do medo não é
causado pelo condicionamento, mas pela decisão a meu respeito, tomada com base
naquele condicionamento. Felizmente, como essa decisão é composta por
pensamentos e reflete-se em contração corporal, ela pode ser minha mestra
quando me experimento neste exato momento. Não necessito forçosamente de um
conhecimento intelectual do que foi meu condicionamento, embora ele possa ser
útil. O que de fato necessito é saber que espécies de pensamentos insisto em
alimentar neste presente momento, hoje, e que contrações corporais exteriores,
tenho exatamente, hoje. Ao atentar para os pensamentos e ao experimentar as
contrações corporais (fazendo o zazen),
o ponto de estrangulamento do medo fica iluminado. Ao fazer isso, minhas falsas
identificações com um self
limitado (a decisão) aos poucos desaparecem . Posso ser cada vez quem sou de
verdade. Um não-self, uma
resposta aberta e disponível à vida. Meu verdadeiro self, desertado e esquecido
há tanto tempo, pode funcionar agora, pois observo que esse ponto é uma ilusão.
Nessa altura vêm-me à mente dois famosos
versos sobre um espelho (um de autoria de um monge que era especialista no
Quinto Patriarca, e outro, de um anônimo que acabaria se tornando o Sexto
Patriarca). Esses versos foram compostos de tal modo que o Quinto Patriarca
deveria julgar se seu autor teria ou não alcançado a verdadeira realização. O
verso do monge (aquele que não foi aceito pelo Quinto Patriarca como a verdade)
afirmava que a prática consistia em
polir o espelho; em outras palavras, removendo o pó de nossos pensamentos e
ações ilusórios, o espelho poderia brilhar (estaríamos purificados). O
outro verso (que revelou ao Quinto Patriarca o profundo entendimento do homem
que seria escolhido como seu sucessor) afirmava que, desde o princípio, “não há
espelho onde se mirar, não há espelho a ser polido, e não há onde o pó se
apegar…”
Então, embora, o verso do Sexto Patriarca
seja o entendimento verdadeiro, para nós o paradoxo é que temos de praticar com
o verso que não foi aceito; precisamos
mesmo polir o espelho; precisamos de fato tomar consciência de nossos
pensamentos e atos; temos de nos conscientizar de nossas falsas reações à vida.
Apenas agindo assim é que chegaremos a perceber que, desde o princípio, o ponto
de estrangulamento do medo é uma ilusão. É óbvio que não temos de nos esforçar
para nos libertar dela. Mas não podemos e não queremos saber disso até termos
polido infatigavelmente o espelho que não existe.
Às vezes, as pessoas dizem: “Bem não há nada que precise ser feito.
Nenhuma prática (polir) é necessária. Se você enxergar com suficiente clareza,
tal prática não tem sentido”. É… porém nós não vemos com suficiente nitidez
e, quando isso acontece, criamos um caos deslumbrado para nós e para os outros.
É preciso de fato praticar, precisamos na realidade polir o espelho, até que
possamos sentir em nossas vísceras a verdade de nossa vida. Assim, podemos
enxergar que, já desde o início, nada era necessário.
Nossa vida sempre está aberta, disponível e
útil. Contudo, não nos iludamos sobre quanta prática sincera devemos realizar
antes de vermos tudo com a mesma clareza com que enxergamos nosso próprio
nariz.
O que lhes estou apresentando é, sem
dúvida, uma visão otimista da prática, embora haja ocasiões em que ela se
tornará desestimulante e difícil. Outra vez, porém, a questão é: temos
bastantes escolhas? Ou morremos — porque se permanecermos muito tempo entalados
no ponto de estrangulamento do medo seremos estrangulados até a morte — ou
lentamente conquistamos uma certa compreensão vivenciando o ponto e
atravessando-o. Não creio que tenhamos tantas escolhas assim. O que vocês
pensam?”
Cuide Bem de Você!
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